por Jaime Gesisky

A Chapada dos Veadeiros, em Goiás, começa a ser destaque na cena das cervejas artesanais brasileiras, na recente onda que conquistou o público sedento de novidades para o paladar.
O movimento por aqui começou puxado por pioneiros, entre os quais se destaca o bioquímico chileno Manuel Alejandro Murga Medina, que havia trabalhado 30 anos em uma cervejaria de grande porte em Santiago.
Manolo e a mulher, Soledad Ramirez Cardemil, chegaram à Chapada em 2006, estabelecendo-se em uma chácara cercada de vegetação nativa, a 1 km do centro de Cavalcante (360 km de Brasília), onde instalariam a fábrica da cerveja Aracê – que quer dizer novo amanhecer, em tupi-guarani. Raiou.
Embora Fritz Maytag tenha dito, em 1937, que os cervejeiros não fazem cerveja, apenas juntam os ingredientes, e que a cerveja “se faz sozinha”, o fato é que a mão humana é capaz de dar uns toquezinhos a mais ao processo milenar de se fabricar a bebida, gerando novas experiências para o paladar mais atento.
Manolo confirma essa tese. Usando água pura de um riacho local, ele imprimiu à bebida uma digital própria, agregando sabores de frutas nativas do Cerrado – o que ajuda a colocar a diversidade do bioma na perspectiva do uso sustentável dos seus recursos naturais. Uma das apostas de Manolo foi o baru – hoje uma das fortalezas do Slow Food.
A produção da Aracê inclui cervejas clara, escura e sem álcool, chope claro e escuro nos estilos Pale Ale, Stout, Fruitbier – com o baru –, Witbier e IPA. Os rótulos homenageiam espécies nativas da savana brasileira e povos tradicionais da Chapada dos Veadeiros.
A Aracê fica em região de influência Kalunga, povo afrodescendente que se instalou na Chapada, ainda no Brasil Colônia, fugindo dos estertores da escravidão e formando um dos maiores quilombos do país.
Tudo é valor agregado. Do ambiental ao social. E essa trilha que a Aracê abriu ajudou o movimento cervejeiro da Chapada a assimilar os valores locais na criação de produtos peculiares – e saborosos.
Chapadeiros
O zootecnista Rodrigo Peres Muniz chegou à Chapada em 2003. Mas só em 2015 decidiu se jogar na onda cervejeira que invadiu o Brasil a partir daquela época. Muniz foi logo atrás de uma formação. Encontrou em Brasília régua e compasso. Na escola, foi logo capturado pelo estilo norte-americano de produzir a bebida. Desde então, segue firme nessa linha.
A partir de muita experimentação, Rodrigo chegou às primeiras receitas. O resultado foi a Chapadeira, hoje sinônimo de excelência entre as brejas artesanais da região. Confiante no produto, mandou logo de cara dez rótulos diferentes. Foi uma fase marcada pela investigação e incontáveis provas.

Em pouco tempo, a Chapadeira chegou a uma espécie de “seleção natural”. A cervejaria artesanal de Muniz sintetiza hoje seu trabalho em cinco rótulos: Session IPA, American Blonde, Stout, APA e Premium Lager. Tem uma produção de cerca de dois mil litros por rótulo, em média.
E ele segue aprimorando seu estilo.
Suas receitas primam por ingredientes de primeira linha, quase todos importados, diante da escassez de bons insumos no país.
“Só agora o Brasil começa a se destacar na produção de lúpulos, por exemplo”, explica Muniz. Mas a Chapadeira, ressalta, também flerta com frutos nativos do Cerrado, entre eles a baunilha nativa da região, uma joia gastronômica com fama para além das nossas fronteiras.
Hoje a produção da Chapadeira concentra-se em uma fábrica “cigana”, em Brasília. Enquanto isso, Rodrigo sonha com uma microunidade para fabricar a cerveja aqui mesmo na Chapada.
O amor pela região inspirou o rótulo das embalagens da Chapadeira, em que a silhueta do Morro da Baleia – uma das mais belas paisagens da Chapada dos Veadeiros – vem em um lindo recorte que cobre as garrafas. Um charme a mais para quem quer uma experiência a mais ao provar a cerveja.
KombiBeer
Seguindo fiéis à linha da boa cervejaria artesanal, o publicitário – e guia de turismo nas trilhas da Chapada – Paulo Enrico Canejo e a bióloga Taiane Pignataro empreendem desde 2020, na retomada pós-pandemia, um negócio criativo em Alto Paraíso de Goiás que dá tons especiais à apreciação de cervejas: a KombiBeer.

Uma Kombi usada de 2012 foi cuidadosamente adaptada para servir chope de primeira linha. Devidamente instalada no centro da cidade, a Kombi é o eixo de uma espécie de parque de diversões para gostos mais apurados.
Ali eles servem pelo menos vinte rótulos entre dezenas de estilos de chope e cervejas em garrafas e latas em suas diversas nuances.
Algumas das cervejas servidas na KombiBeer levam a assinatura do casal, com estilos Stout, Red Ale, Sour, IPA. Outras são produzidas por cervejarias parceiras.
A de cagaita – fruto nativo do Cerrado – gera uma Saisson, no melhor estilo belga. É produzida pela cervejaria Quatro Poderes, de Brasília, o que mostra que parceria é palavra apropriada a esse movimento. Muitas das polpas de frutas do Cerrado usadas na fabricação das cervejas vêm do território Kalunga.
O Cerrado, aliás, é mote constante na KombiBeer, com opções de cervejas que levam outros frutos nativos na composição, como o chope Sur, azedinho, feito com cajuzinho-do-cerrado. Os pequenos cajus nativos são colhidos pelos Kalunga, em seu vasto território de diversidade. A Session Ipa que eles oferecem é de pitanga, de aroma frutado.
Mas tem ainda sabores inusitados como o chope no estilo American IPA, feito com a polpa do cacau, em que o aroma da bebida remete a uma barra de chocolate. Na boca, suave, delicioso, fresco. É de se tomar em estado de contrição.
A KombiBeer, todavia, não vende só cerveja. O projeto injeta cultura na noite da Chapada.
Além de educar novos paladares para a apreciação da cerveja, os empreendedores também se dedicam a difundir a arte.
Músicos encontram ali um local para apresentar seus acordes. As paredes do terreno onde a Kombi ancora são cobertas por painéis da artista visual Vitória Tavares, que também assina o design da Kombi. São pinturas que remetem ao Cerrado – uma vertigem.
A playlist selecionada com rigor pelo casal, e que toca toda a noite no já consagrado espaço cultural, virou mantra aqui em casa. Tem blues, jazz, MPB, samba…
Segura essa onda!
Deu vontade de experimentar todas!
Eu gosto de mais desta cerveja artesanal